Para quem não sabe, eu sou filho de um juiz de direito. De um juiz de direito à moda antiga.
Filho de um ferroviário, de uma família muito simples, composta por 5 irmãos, meu pai foi o único dos filhos que resolveu estudar e vencer na vida. Assim, já aos 10 anos de idade, tinha por costume acordar às 4 horas da manhã, muitas vezes sob um frio inferior a Oº, para ajudar seu padrinho a tirar leite.
Já por volta das 6 horas, meu pai se dirigia a uma padaria, onde entregava pães pela cidade, de porta em porta, para às 8 horas chegar na escola e iniciar seus estudos. Isso aos 10 anos de idade, quando menor trabalhar e estudar não era considerado crime. Essa foi a infância do meu pai.
E foi assim que ele se formou em contabilidade, logo em seguida tendo se formado advogado, profissão que ele preferiu abandonar. Segundo sua explicação, a opção pelo abandono da advocacia se deu pelo fato de que ele não tinha coragem de tirar uma televisão, um carro ou uma casa de um pobre coitado pai de família para receber seus honorários, e que eventualmente precisasse dos seus serviços, considerando que ele à época era diretor do SESI e presidente do Círculo Operário da cidade de Passo Fundo, entidade voltada para as causas sociais e em defesa do trabalhador.
UMA VIDA DE ESTUDOS E TRABALHO
Com 4 filhos para criar e sustentar, já por volta dos 35 anos, resolveu fazer concurso para juiz de direito, o que o obrigou a voltar a acordar às 4 horas da matina, quando fazia um café bem forte, se enrolava num cobertor, e, só com os dedos para fora, folheava os livros, sentenças, acórdãos e jurisprudências, sendo que por volta das 7 horas encerrava seus estudos, preparava o café para os filhos, nos levava à escola e ia para o seu trabalho, o que o levou a obter a 18º colocação no concurso para juiz de direito no Rio Grande do Sul, um dos mais concorridos do país.
DISTÂNCIA PRUDENTE DE PREFEITOS E ADVOGADOS
Assim posto, como filho de um juiz, me criei em meio a promotores, juízes e advogados, os quais geralmente se encontravam aos fins de semana para confraternizar e saborear suculentos churrascos, ora na casa de um ora na casa de outro.
E me lembro muito bem dos cuidados que meu pai tinha, tanto no sentido de não se envolver com advogados como não se envolver com políticos, principalmente com prefeitos, que viviam a lhe paparicar e oferecer vantagens diversas, reservando aos promotores um tratamento mais cortês e diferenciado, mas sobretudo equidistante e calcado nas prerrogativas de cada um.
Lembro também de alguns embates que ele teve com prefeitos, advogados e promotores, sem contudo jamais faltar-lhes o respeito, porém colocando cada um no seu devido lugar. Lembro até quando ele dizia que um juiz prende um prefeito, mas um prefeito não prende um juiz. Se bem que naquela época prefeitos não se elegiam apenas para sairem milionários de prefeituras, como se vê atualmente. Os embates eram um pouco diferentes.
Falava em Dr. Olmiro, todos indistintamente o respeitavam, pois sabiam que estavam diante de um homem absolutamente íntegro, corajoso e que não tinha medo de tomar decisões, sempre com a preocupação maior de não condenar um inocente e nem libertar um culpado.
Tanto que em 30 anos de magistratura, salvo engano, teve apenas uma ou duas decisões reformadas pelo TJ-RS, o que demonstra o grau de lisura e conhecimento jurídico em suas decisões.
A “FORTUNA” ACUMULADA
E nunca se ouviu falar, em seus mais de 30 anos de magistratura, qualquer representação ou desvio de conduta do meu pai e que se tornou um dos juízes mais sábios e respeitados do Rio Grande do Sul.
Prestes a se aposentar, recusou, sob os meus protestos, convite para ocupar uma vaga de desembargador, sob a alegação de que tinha vergonha das decisões muitas vezes desumanas e parciais de muitos dos seus colegas, e com os misteriosos conchavos que eventualmente observava nos tribunais.
Morreu aos 82 anos de idade com apenas R$ 190.000,00 na sua conta corrente, além de alguns poucos imóveis financiados em longos anos, e isso ainda contando com a ajuda e a total independência financeira da minha mãe, ela uma das melhores dentistas do estado, professora universitária altamente conceituada e sua companheira nas duras batalhas da vida.
Esse foi o juiz que eu conheci de perto. Por mais que eu me esforce e procure herdar ao menos a dignidade e o senso de humanidade que ele me deixou como exemplo, não consigo chegar sequer a 10% do grande homem que meu pai foi. Saudade eterna.